Não se compreende como os portugueses ainda aguentam ouvir as queixas dos professores. É insuportável. Todos os dias, absolutamente a toda a hora há um canal de televisão, um jornal, uma rádio onde um, dois, três, vinte professores se queixam disto e daquilo. E o mais intolerável é perceber-lhes as razões. E nem saber bem como discordar delas, porque na verdade não sabemos bem do que falam.
É cansativo dar a razão constantemente à mesma pessoa. Se, ao menos, os professores ainda se queixassem sempre do mesmo. Mas não. Queixam-se de montanhas de coisas diferentes. E a maior parte delas é incompreensível. Não se faz ideia do que falam, mas parecem determinados. Não há pachorra. Mesmo o maior crítico dos professores desconfia secretamente que lhes deve alguma coisa de valor. Não sabe bem o que é, mas sabe. E isso irrita-o profundamente.
Mesmo quando se prepara para retirar-lhes a razão aqui e ali – e este exército vai aumentando de dia para dia – bem lá no fundo sabe que endoideceria se o obrigassem a ir para dentro de uma sala aturar vinte e seis filhos de outrem com manias marialvas e sobrancerias adolescentes, durante uma só semana que fosse. O detrator de professores sofre sempre da síndrome de impostor. É como um canalizador que só trabalha por teletrabalho ou um enfermeiro com horror a sangue e agulhas.
Tagarelar e comentar é sempre mais simples do que ir à liça ou, simplesmente, fazer melhor.
Uma Babel digital
Um exemplo: a burocracia. Já ninguém aguenta ouvir os professores falarem da "excessiva carga burocrática" que têm nas suas vidas. Ainda por cima quando é sabido que hoje em dia tudo quanto os professores fazem é com recurso ao digital. Tudo é digital. As aulas são digitais. A miudagem é digital. As reuniões são digitais. Os manuais são digitais. A avaliação é digital. A formação é digital. As faltas são digitais. O correio é digital. Os exames são digitais.
Como é possível que tanto professor se queixe de burocracia quando ele é hoje um militante digital? Que lamúria piegas. De que falam eles quando falam de burocracia na educação?
Como de costume mais vale estar calado e escutar do que falar do que não se sabe.
Vamos então a isto. Aí vai: quarenta e duas plataformas digitais. Pronto: está dito. É uma brutalidade. Cada escola tem quarenta e duas plataformas digitais para preencher com dados já antes navegados e cuja utilidade é de tal modo excêntrica e peculiar que leva qualquer campeão do digital a deitar a toalha ao chão.
Não se exagere nisto. A introdução do digital nas escolas está a afirmar-se como o maior precipício organizacional das instituições educativas. É um poço sem fundo. Existe hoje uma pulverização de plataformas digitais nas escolas, imposta às suas direções e aos professores. Quando se diz quarenta e duas compreenda-se que se trata apenas de uma média.
Escolas há que se encontram inundadas de um número maior de formulários online por preencher e que são criados sempre com a mais benigna das intenções, mas que perderam toda a noção do conjunto de informações pedidas, nada compreendem sobre fluxos de informação e gestão informacional. As escolas têm muito que fazer. Há coisas que não se pedem muito menos por pressões de umbiguismo administrativo. A última coisa de que as escolas precisam é de gente espantadiça a reclamar dados, dia sim, dia sim, quase sempre "para ontem".
A PANINI das escolas
A absoluta aleatoriedade de um planeamento informacional perturba a vida e a gestão de uma escola de um modo, dir-se-ia, malfeitor. Abate-se hoje sobre as escolas e sobre os professores um fenómeno de delinquência informacional. Uma asfixia digital que tem autores e tem nomes; aqui se deixam alguns para que se perceba o que é isso da burocracia digital que sufoca o tempo das escolas, afoga os professores e esgana as gestões escolares.
Sumários eletrónicos; portarias; postos de venda; horários de alunos, docentes e salas; GIAE ou inovar online, SIGHRE; SIGAE/SIGA Alunos Edubox; SINAGET; site DGE, Extranet IAVE; SIME e MEGA (manuais escolares); portal para o apoio tecnológico às escolas; GES Edu/ IGEFE; SIOE (recursos humanos); áreas reservadas DGESTE / Recorra (refeitórios); Psicólogos POCH; AECs; SISE (segurança escolar); Desporto escolar; DocGest; SIIESTE (edifícios escolares); SIGO; Portal das matrículas; Portal Escola Digital; Vortal (compras públicas) SIRBE (bibliotecas escolares) PNL; Biblionet; ANQEP (certificação EQAVET); ADSE e CGA directa. Ufa. (Ufa não é uma plataforma).
Neste momento haverá muita gente a dizer que faltam muitos cromos nesta caderneta. Têm razão. Para quando uma coleção de cromos da Panini sobre o infindável mundo das aplicações informáticas na administração educativa?
A liquidação do ânimo e do tempo
Não é admissível arengar sobre educação sem compreender o que é o quotidiano de uma escola, em permanência, continuadamente. Quem escolhe ser professor fá-lo porque gosta de fazer com que os miúdos aprendam e acha que é bom nisso.
Para a maioria, repita-se as vezes que for necessário, os miúdos são ainda a única coisa que os conserva na profissão. Se quisessem ser informáticos de alpaca, teriam escolhido sê-lo. Não escolheram.
Neste momento o digital educativo começa a ser encarado como um desgaste inclemente da sensatez organizacional e da inteligência administrativa. No meio de tanta solicitação digital, alguma coisa de muito analógico terá de ceder. E o que cede é o ânimo. O tempo. Infeta um e sequestra o outro. E esta é uma profissão feita essencialmente dessas duas coisas: de ânimo e de tempo. Sempre assim foi, mas nos tempos que correm, estes converteram-se em comodidades de luxo que vamos dissipando com imperturbável irresponsabilidade.
Um enxame de ferrões digitais provoca reações alérgicas, vermelhidão na pele, dor, inchaços e coceiras várias. Para aliviar estes sintomas é imprescindível remover os espigões, antes que se dê uma reação anafilática fatal. É preciso coragem para retirar o ferrão sem infetar tudo em seu redor. É uma questão de higiene informacional, brio administrativo e de honra profissional. Também aqui "entre a desonra e a guerra, quem escolhe a desonra terá a guerra".
Quando tudo se fazia à mão
É necessário limpar a fundo o panorama informacional das escolas. Um detergente hierárquico. Um exemplo de cima a baixo. A escola pública precisa de uma esfregona, uma vassourada firme que ponha termo a este entulho digital, esta lixeira informática a céu aberto que leva os professores a abandonar o caminho virtuoso, prestável e profissional da integração criativa e inadiável da digitalização na educação. Abandonam-no por náusea e por exaustão. É necessário imputar responsabilidades e reclamar simplicidade.
É crucial que alguém dê uma bela descompostura a quem continua a alimentar este afã saloio de forjar uma capilaridade de plataformas digitais redundantes e incoerentes, desconectadas entre si e desligadas da realidade dos dias das escolas. É necessário, de novo, escutar os professores. É preciso reduzir, reciclar e reutilizar; é preciso dominar conceitos elementares da ciência da informação, como necessidade e comportamento informacional.
Há uns anos, a burocracia nem era um problema nesta profissão. Ela resumia-se a preencher dois ou três papéis à mão. Sumários em livros. Pautas escritas à mão. Atas vertidas em canhenhos com lombadas vetustas e frases solenes onde cada erro, gralha ou rasura era corrigida com um "digo".
Que maravilha quando o maior pânico burocrático de um professor era ter de refazer uma pauta inteirinha apenas porque se enganou num nome ou num tacanho algarismo. E pronto. Mais nada. O restante tempo era usado para fazer aprender. Preparar aulas e estar com alunos. Aprender e estudar.
Queremos mesmo suscitar saudades de um tempo assim, por causa de excentricidades digitais que oneram os professores com horas e mais horas de inutilidades tecladas?
O diretor no seu labirinto
Há uns anos uma série de humor da BBC, "People like us" decidiu abordar o universo escolar.
Entrevistava um fictício diretor de uma escola que dizia ser muito complicado administrar um estabelecimento de ensino. Argumentava que, por vezes, acontecem incidentes em zonas da escola que ficam muito longe do gabinete do diretor.
O jornalista perguntou então por que razão não sai o diretor do seu gabinete e vai ao local onde acontecem esses incidentes. Ele respondeu que não podia porque "tenho uma escola para governar". Não saberemos nós fazer melhor do que isto?
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